domingo, 20 de setembro de 2015

A desarticulação do ensino articulado

Ensino especializado de música vai estar vedado aos alunos mais novos

"Cortes no financiamento aos conservatórios impedem aberturas de turmas do 5.º ano, o primeiro do ensino articulado de música. “Pelo caminho ficam sonhos, fundamentalmente dos alunos”, testemunha Carlos Ferraz, pai de uma das alunas prejudicadas com esta medida."

Notícia do Público de 16/09/2015 que pode ler aqui, na íntegra.
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Trata-se de um assunto sobre o qual já deveria ter escrito, mas que acabei por não fazer.  Vivemos numa sociedade onde se praticam tantas injustiças que chega a cansar e acabei por deixar morrer esta. Agora, que este assunto está na ordem do dia, não posso deixar passar sem dizer que, se por um lado não concordo com o fim do ensino articulado, por outro tendo a concordar. Isto porque, patrocinar o ensino da música  a crianças, cujos pais o podem fazer está fora das minhas possibilidades. Das minhas e da maioria das famílias portuguesas. No meu caso, com a agravante de que as minhas filhas ficaram excluídas dessa possibilidade.


Pergunto-me, se não tive a possibilidade das minhas educandas poderem frequentar este tipo de ensino, porque hei-de patrociná-lo aos filhos de outros com mais possibilidades do que eu? Que me desculpem, mas não vejo razões para me incomodar demasiado com o seu fim.  

Ontem, uma pessoa conhecida abordou este assunto comigo e disse-me o seguinte: ”O início do fim do ensino articulado, começou em Tavira, há meia dúzia de anos.” É capaz de ter razão!...

Mas comecemos pelo início da história...

Era uma vez uma menina que frequentava o 4.º ano do ensino básico, no ano letivo de 2009/10 e que chegou a casa com um folheto da Academia de Música, com informação referente ao ensino articulado. Disse que lhe tinha dado o professor de Música e que a tinha incentivado a seguir o ensino de música porque era muito boa aluna e tinha vocação para a música. Seria uma pena ela não aproveitar aquela oportunidade.  A mãe ficou muito feliz com a notícia e com o entusiasmo da filha e quando chegou a altura da matrícula no 5.º ano, claro que a opção foi pelo ensino articulado. Tudo certo e todos felizes!


Mas... vai de lá e o cenário mudou. Foram chamados os encarregados de educação à Academia para uma reunião sobre o ensino articulado, para comunicar que afinal o Ministério tinha cortado nas verbas e não poderiam aceitar todas as inscrições e que a opção tinha sido apenas por aceitarem a turma de uma escola que não era a escola que a minha filha frequentava. E mesmo que fosse, a injustiça seria a mesma. Ficariam sempre de fora crianças verdadeiramente interessadas e com vocação. Nesta situação e por uma questão de justiça e de igualdade de oportunidades, considero que deveriam ter feito testes para apurar os que teriam mais vocação para prosseguirem no ensino da música. Não foi o que aconteceu e desta forma, os alunos da Escola Dom Paio Peres Correia, ficaram simplesmente excluídos da possibilidade de poderem frequentar o ensino articulado, no ano letivo de 2010/11 e seguintes. Foi um enorme injustiça, um enorme balde de água fria, mas enfim... é o país que temos e acabei por me resignar. Ainda pensei reclamar junto do Ministério da Educação, mas acabei por concluir que seria uma perda de tempo, já estava tudo mais do que decidido e no vai que vem de reclamação e análise e resposta à mesma, mesmo que me viessem a dar razão, o ano letivo já iria avançado. Pelo que fiquei sossegada, mas muito indignada com toda esta situação.

Não..., não foi o fim da história. No ano letivo passado, a minha filha do meio foi para o 5.º ano e, novamente, opção pelo ensino articulado. Não entrou, não havia vaga. Porquê? Simples: as vagas foram ocupadas com alunos que já frequentavam a Academia em anos letivos anteriores (pagando as famílias por esse mesmo ensino) e as vagas não chegaram para todos os interessados.

Resumo da história:
- Quem tem dinheiro inscreve os filhos na Academia de Música, que vão frequentando o ensino da música e que, ao chegarem ao 5.º ano têm a sua vaga garantida no ensino articulado.

- Quem não tem dinheiro para inscrever os filhos, acaba por não conseguir uma vaga no ensino articulado, porque essas vagas são para as crianças que já frequentam. Ahhh, agora já se fazem testes/ avaliações/ audições para escolher quem entra. Claro, os que lá andam têm classificação superior aos que não andam, como é evidente!...

Não sei o que se passou com o ensino articulado no resto do país, mas se a fotografia for esta ou semelhante ao que se passou cá em Tavira, e se houve queixas no Ministério da Educação, queixa que neste caso, acabei por não fazer, então acabo por compreender a decisão do Ministério.

Sou a favor do ensino articulado, desde que promova igualdade de oportunidades para todos: ricos, pobres e remediados, quer frequentem, quer não frequentem o ensino de música em anos letivos anteriores ao ingresso no 5.º ano, ano em que tem início este tipo de ensino. Se assim não for, não se justifica, está completamente desarticulado das necessidades da maioria das famílias portuguesas. Acaba por promover apenas os que já podiam.

Relatei, rigorosamente, o que se passou com a tentativa de frequência do ensino articulado, nesta família. Somos apenas um exemplo, mas desconfio que haverá muitos mais por esse país fora. Não sei se foi feito algum estudo, mas espero que sim.

Compreendo muito bem a frustração e indignação destes pais e crianças. Afinal, cá em casa já vivi isso duas vezes...

Espero que possamos vir a ter, a curto prazo, um ensino verdadeiramente articulado, em que se articule a vocação da criança, com a avaliação da mesma nos quatro anos em que frequentou o ensino da música no ensino básico, como atividade extra-curricular (AEC) e com o rendimento das famílias. Estamos, afinal, a falar de uma bolsa de estudo. Este é o meu pequeno contributo para que isso possa vir a acontecer. Desejo que outras famílias não passem por esta mesma injustiça.

Pela cidadania e pelo bem comum!

Noélia Falcão